Um deus que fecha os olhos, colhendo o que se semeia
As influências do secularismo na vida cotidiana se refletem na espiritualidade da grande maioria das pessoas, e trazem como consequência a precedência dos interesses materiais sobre as matérias da alma. Para essa maioria, a Bíblia não é mais uma ilustração memorável daquilo que ouvimos dentro de nós mesmos; na verdade, ela tem sido uma descoberta memorável daquilo que não temos e não ouvimos dentro de nós mesmos. A mentalidade cristã procurou e achou uma maneira de entender a vida à luz da revelação de Deus, mas a mentalidade contemporânea rejeita essa luz e busca iluminação na experiência pessoal.
Na cultura pragmática vivenciada nos dias de hoje a realidade é de tal forma privatizada e relativa, que muitas vezes se entende a verdade com um significado para cada indivíduo; define-se a verdade como qualquer coisa que funcione para determinada pessoa. Contudo, a verdade de Deus, objetiva em seu caráter, não se enquadra nesse pensamento.
A igreja da atualidade busca no reavivamento algo que traga mais tempero, entusiasmo e eficiência, algo que pode ser engendrado com a técnica correta. Porém, o que acontece, é simplesmente a aplicação de uma solução da modernidade para um problema causado pela própria modernidade – um beco sem saida. A solução não será por auto-regeneração, por mais refinada que seja a linguagem religiosa com que se revista. Carecemos não apenas de reavivamento, mas de reforma – tanto corporativa quanto individual.
O que se vê atualmente é uma necessidade forte de se adequar, de se estar de acordo com a cultura reinante e isso é percebido nas adaptações à modernidade. O liberalismo desencadeado há algumas décadas foi um processo deliberado de ajuste do conteúdo da fé, para colocá-la em conformidade com os dogmas da cultura, e muitos o praticam de maneira quase inconsciente.
Podemos entender a realidade de duas maneiras: ou se tem uma visão do ser humano como um animal racional apenas, ou de um ser criado à imagem de Deus. Neste caso reconheceremos em nós a capacidade de sermos preenchidos por algo que seja divino, verdadeiro e bom.
A linguagem da psicologia secular, que é moderna em seus interesses e perspectivas, muitas vezes impõe uma ideia contrária à imagem de Deus, uma visão de pecado e de Deus substancialmente diferente da ideia encontrada na Bíblia. Apesar disso, tornou-se a linguagem do mundo, e essa maneira fere o coração da fé cristã porque contraria o que lhe dá autoridade, isto é, a Palavra de Deus.
A fé cristã somente poderá ser cristã se for constituida na Palavra de Deus, a norma que Ele nos legou para reconstituir uma vida de pecado. A Bíblia mostra ao pecador que o santo propósito de Deus é ser contra muitas coisas tidas como normas no mundo.
A experiência do mundo não nos dá acesso a Deus; somente Ele pode nos dar esse acesso, originado na sua graça, objetivamente fundamentada em Jesus Cristo, e acessível a qualquer pessoa do mundo. Não através de suas próprias experiências, mas do aceitar a verdade de Deus revelada.
A biografia de Jesus se torna incompreensível, a menos que seja lida como uma jornada em direção à cruz. E isso nos ajuda a entender a profundidade do amor de Deus ao vir de sua infinita glória na eternidade para nos alcançar em nossa insignificância. O caráter eterno da vontade do Pai é importante porque aponta para o fato do dilema da vida, que deve ser vista tendo como pano de fundo a eternidade. E, somente quando percebemos o propósito de Deus adquirimos um padrão, pelo qual podemos julgar o propósito fútil que a vida do mundo deposita na sua banalidade, ao ter perdido seu direcionamento moral. E os problemas da modernidade estão diretamente ligados à moralidade.
Jesus estabelece tudo em harmonia com a santidade de Deus, a qual torna a cruz de Cristo compreensível. É ela a luz que expõe as trevas da modernidade, esvaziada de propósitos morais sérios. A modernidade subtraiu das pessoas a capacidade de ver o mundo em termos morais, e isso, por sua vez, impede o acesso das pessoas à realidade.
A santidade de Deus é fundamental ao que Ele é e ao que Ele faz. Porém a visão atual do mundo redireciona o foco das atenções, da transcendência de Deus para a Sua imanência de Deus, como se fosse um convívio amigável com a modernidade.
A perda da visão tradicional de um Deus santo se manifesta em todos os lugares; pecado e graça se tornaram termos vazios de significado. Que profundidade ou significado podem ter esses termos, exceto em relação à santidade de Deus?
Divorciado da santidade de Deus, pecado é meramente um comportamento autodestruidor, ou uma quebra de etiqueta. Divorciada da santidade de Deus, graça é simplesmente retórica vazia, uma vestimenta piedosa, com a qual os pecadores podem realizar sua própria salvação. Divorciado da santidade de Deus, o evangelho se torna semelhante a qualquer doutrina de autoajuda. Divorciada da santidade de Deus, a moralidade pública se reduz à troca de interesses em uma competição privada. Divorciadas da santidade de Deus, as funções religiosas se tornam apenas entretenimento.
A santidade de Deus é a pedra fundamental da fé cristã, pois é o fundamento da realidade, e o pecado é o desafio à santidade de Deus. A cruz é o trabalho exterior e a vitória da santidade de Deus; fé é o reconhecimento da Sua santidade, o reconhecimento que Ele é santo.
E a chave para o reconhecimento da vida é conhecer Cristo na sua essência. Conhecer a razão porque Ele veio ao mundo e saber como terminará esta vida .
Este Deus majestoso e santo, que ama sem fronteiras porque sua santidade não conhece limites, este Deus está desaparecendo do mundo atual. Ele foi substituído, em muitos lugares, por um deus que fecha os olhos, cujos propósitos morais se tornaram conselhos antiquados; um deus que deixa pequenos erros passarem despercebidos, ou que negocia da maneira que nos convém; um deus cuja igreja é uma loja de trocas, aonde os fiéis chegam cheios de moedas da necessidade para comprar.
Na sociedade secular de hoje busca-se felicidade em vez de retidão, busca-se realizar-se ao invés de encher-se do Espírito de Deus, interessa-se mais pela autossatisfação do que no disprazer com tudo que é errado. Os hábitos do mundo hodierno, sorrateiramente infiltrados no mundo cristão, precisam ser destruidos ao invés de fortalecidos; precisam ser arrancados pela raíz, ao invés de serem revestidos com um “entusiasmo religioso.”
Infelizmente, para muitos a centralidade de Deus na vida está desaparecendo porque perderam a capacidade de adorá-lo em espírito e em verdade. Neles, o que se vê é um vazio da fé sem teologia, reflexo do vazio da vida secular da modernidade, que almeja um mundo onde Deus não tem lugar; onde a realidade tem sido reescrita; onde Cristo se tornou redundante, sua palavra irrelevante e a igreja deve, agora, encontrar novas razões para sua existência.
A menos que nós, crentes, recuperemos o conhecimento do que significa viver perante um Deus que é santo; a menos que o culto a Deus possa ser reaprendido em humildade, maravilha, amor e louvor; a menos que a igreja possa encontrar outra vez um propósito moral no mundo, que ressoe a santidade de Deus em completa identificação com ela; a menos que nós cristãos façamos todas essas coisas, a centralidade de Deus não terá lugar na vida. Mas, o reverso também é verdadeiro. Se pudermos encontrar um lugar para a teologia, tirando o foco de sobre nós mesmos e buscando a centralidade de Deus; se pudermos nos firmar sobre a suficiência de Deus; se pudermos recuperar nossa fibra moral; então, teremos alguma coisa a dizer ao mundo, agora afundado na modernidade.
Aqui encontramos uma ironia: aqueles que são mais relevantes para o mundo são mais irrelevantes para o propósito moral de Deus. Mas, aqueles que são irrelevantes para o mundo porque são relevantes para Deus, esses, na verdade, têm muito a dizer para o mundo. Na verdade são os únicos que têm alguma coisa a dizer. Foi isso que Jesus declarou, que a igreja reconheceu nos seus melhores momentos, e nós, pela graça de Deus, podemos ainda redescobrir.
O apóstolo Paulo nos faz uma advertência: “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará” (Gl 6,7).
Rev. Enoch S. Nascimento